sexta-feira, 7 de setembro de 2012

XIII - ALÉM DO RIO IBER



Mitologicamente, aprendi, em meus ensinos sobre a história de minha terra portuguesa, que estudiosos asseveram que havia um rio chamado Iber, no qual os gregos navegavam e referiam-se aos povos de lá encontrados como “os que viviam além do rio Iber”. Esse povo ibérico resultou de um milenário processo de miscigenação e de constantes aculturações. Na mesma perspectiva da afirmativa, Ulisses, da Odisseia, de Homero, teria chegado à nossa península, tornando-se o ancestral precursor da predestinação das navegações.
Descobri recém-nascido Portugal, terra que surgiu com a reconquista cristã, pelo Mar, que marcou o imaginário português, o meu. A identidade forte dessa terra sempre foi a navegação. O mar era a estrada – “Aqui, onde a terra acaba e o mar começa”, Camões. No entanto, o mar portuguez acabou. Findaram o enfrentamento do mar, a conquista de novos portos, o projeto de Colombo, os descobrimentos e os heróis. O mar é salgado de tanto as pessoas chorarem a partida de seus parentes. Todo porto é uma saudade de pedra, nossa perdição!
Em Portugal, a dicotomia entre o mar e terra foi importante para o deslocamento de uma interpretação: grande é o pequeno e infinito, o finito. Se moras numa pensão, não consegues ficar nela, mas, se vives numa mansão, não desejas sair dela. O ser humano não consegue viver em sua própria condição física; querendo sempre ser outro além de si mesmo. Tende sempre a imaginar ou flutuar como se saísse do próprio corpo para conquistar tudo aquilo que sua prisionável matéria não permite a ele, infelizmente. Por isso o homem deseja transcendência espiritual, o físico é uma prisão particular. Mas... carpe diem, adapte-se e viva bem o seu corpo. Assim é Portugal. Um espaço pequeno, ao qual o mar sempre foi uma estrada e não o sustento. Um lugar só existe em relação a um corpo. O saudoso mar fez Portugal ser o que é. Sou homem a partir de que vejo a mulher, como espírito a partir da matéria. Só quem me fita tem noção de quem sou. Quando somos pequenos, temos lembranças de lugares grandes, contudo, quando retornamos percebemos que não eram tão grandes. Foi dada a ilusão de grande ao que é pequeno, maravilhoso ao que é vulgar e infinito ao limitado. Com o amor também é assim e, como exporei brevemente minha sina, soube muito bem nos nervos. Por fim, tudo não passa de uma eterna dialética.
É... mas tudo não passou de simbologia. Esse mundo milenar à espera de um Deus, de um messias, de um amor verdadeiro, torna-se discurso épico, que canta o presente para glorificar o saudoso passado e fundar o futuro. Para mim, espírito, nada disso importa! É justificativa de malogrado. Segundo uma professora de minha adolescência - infelizmente não me lembro do nome dela -; glorificar o passado em contraposição ao presente é viver o presente frustradamente. No meu caso, é melhor apegar-me ao passado.
Então, ainda no ano de 1840, cheguei à Finisterra, pois, à visão europeia, era o fim do mundo, não sendo considerada, por alguns, como Europa. Meus pais moravam em Coimbra e para lá fomos. Na casa dos Costas, para a sociedade coimbrã, Judite, a governanta, auxiliava Dona Maria Alencar em casa com seu morgado. E assim cresci, estudei e tornei-me homem. Não me lembro de passagens de minha infância, portanto, espero que não me perguntes. Adiantar-me-ei no espaço-tempo à maior idade.
Tudo isso fez parte de uma história. Alguém tinha de criar-me. Não seria alguém socialmente nem frequentaria lugar algum sendo filho de um mouro e uma judia, exatamente.

XII - LISIEUX, MEU PRIMEIRO BERÇO



Nasci na França, na cidade de Lisieux, pela coincidência de minha família hospedar-se lá antes de retornarem, enfim, a Portugal. Essa terra antiquíssima, situada na região da Normandia, povoada desde os tempos romanos, foi a sede episcopal da Revolução Francesa.
Lá meus pais ficaram hospedados na casa de um conhecido da família, o senhor Jean-Paul, que viabilizou meus registros. Pelo grau de relevância que tem à minha história, convencionalmente já disse tudo sobre ele. Portanto, só ressalto que não tenho dupla nacionalidade, e sim pelo menos três!
Nesta cidade, que obteve posteriormente fama mundial, meus pais permaneceram pouco tempo. Após algumas semanas, os Costas, a governanta Judite e seu acompanhante Jônatas viajam rumo à histórica Lusitânia.
Foi nessa terra que minha vida como um Costa teve início. Aqui sucedeu todo o tratado entre os meus pais e minha mãe, quando me deixou ser filho de minha mãe Maria. Como disse, esta era fraca e não poderia conceber um rebento. E como viajavam bastante, a sociedade não desconfiaria da real procedência do guri. Judite, a governanta, a mulher que também tomara conta de Maria do Socorro, seria a ama-seca, bem, melhor ficaria “ama-molhada”, já que cuidara de mim amamentando.
E dessa forma eu vivi. Judite deixou Juan de Córdoba, criou-me como um Costa, a partir do dia que nasci numa data invernal, em Lisieux, na França.

XI - MINHA FAMÍLIA - MINHA CASA PORTUGUESA



Resumindo, Judite conheceu Juan, quando Costa, meu pai, foi a Cádiz. Desde então, não se separaram. Entretanto, ela jamais poderia segui-lo e ele, a ela. Merda de questão cultural! Também não sei dizer se Juan voltou a Marrocos ou não.
Enfim...
Minha mãe disse que nasci no inverno, se não falha a memória. Se não foi em fevereiro, março... não lembro. Sei que era inverno em Lisieux. Nasci num frio dia europeu, na velha França.
Pronto, agora surgi materialmente, como corpo.
Por meu pai ser chamado de Juan, recebi o nome João, e Costa herdei do meu outro pai, que me registrou e se dedicou-me. Morei em Salvador baseado nisso tudo com minha mãe Judite. O nome do homem que me criou era Mathias Antunes Costa, Mathias com th. Isso mesmo... isso mesmo. A mulher dele, minha mãe, chamava-se Maria do Socorro Alencar, um nome desgraçado de grande. Não sei o porquê de as mulheres terem nomes tão grandes... Maria do Socorro Alencar de Almeida Costa, isto mesmo! Era o nome. Agora, sacanagem é que Judite era só Judite; não tinha nome no final, era Judite de uma... uma... tribo e só. Era da família tal. Não tinha essa questão toda de nome.
Meu pai deveria ter um metro e setenta e três centímetros de altura, barrigudo, bigode grande emendado à costeleta, olhos pretos. Tinha uma caligrafia esplêndida. Com ele aprendi o célebre ditado: “quem não rouba nem herda, nunca sai da merda”.
Assevero-te, leitor, que meus pais adotivos não foram para o Brasil comigo. Ficaram em Portugal, pertencendo a terra. Quando vim para o Brasil, minha mãe, aquela que ficou sendo-a, já havia morrido. Ela era de uma cor branca meio escurecida, é... Maria era uma portuguesa dos Açores. Era baixa, redonda, bigode, tinha muito corpo, era gorda, pois tinha de ser, senão não teria valor. Magras eram as putas. As mulheres de casa eram de tetas grandes, aparentando senhoras. Era escurecida com um sinal no rosto, próximo à boca. Deveria ser mais ou menos da cor de quem... da...
Caso procures, encontrarás muitos povos de Portugal dessa cor, muito, muito mesmo. Não havia só branco-branco, branco-branco de maneira nenhuma, nem todo mundo era branco, de pele branca. Não haveria como existir somente branco. Eu não nasci preto, somente meus cabelos escorridos que poderia amarrá-los e fazer rabo de cavalo... eram iguais ao do meu pai Mathias e não ao de Juan de Córdoba. Falo mais daquele do que desse, pois foi apenas uma mera casualidade. Foi a junção de órgãos sexuais - não sendo vulgar, como dizem - que me fez surgir. Não o conheci pessoalmente e não sei se no sonho era ele mesmo ou uma imaginação bem guardada minha no inconsciente dos relatos de Judite. Creio que não me conheceu, tampouco tomou existência. Se tomou, não importa; meu pai é o Costa! ... às vezes, falo uma coisa neste momento e daqui a pouco não consigo recordar mais. Escusa-me... me desviei do percurso do meu propósito, perdi a linha do raciocínio destinada a este capítulo.
É... quando puder, retorno.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

X - ÚLTIMO AMOR



Os imutáveis e pseudomeses primaveris a um outro mês haveriam de dar lugar. Cedo ou tarde outra estação assumir-se-ia. Pois, segundo a filosofia, a mudança é inevitável.
Meu pai adorava sua tribo, sua raça, sua liberdade; desde criança tivera esses ensinamentos, nunca havera escondido sua condição. Recebera uma educação meticulosa, à maneira do pai e dos cãs. Era nômade porque era tradição o indivíduo procurar o conhecimento junto a todos que pudessem compartilhá-lo. Por isso, não poderia ficar para trás, era o sucedâneo, possuía o sangue, era o desejo e toda uma descendência. Por conseguinte, apaixonara-se por uma mulher do mundo, do mundo de que ele não fazia parte, do mundo que a ele não era permitido a permanência definitiva.
Percebe, o existencialismo é cruel e truculento; não permite que haja diálogo e acordos que contemplem a duas partes: dois caminhos distintos, a dicotomia. Isso ou aquilo. Maldito seja! Ou minha mãe acompanharia Juan ou vice-versa. Porém, um não seguiu o outro. Veredas desiguais seguidas.
No início, a família não havia aceitado o envolvimento, no entanto não tinha o que fazer. Ela gostou dele e era uma mulher livre mesmo sendo governanta. Só que os Costas estavam de malas prontas para uma breve estada na França.
Enfim, poucos dias após, Judite, com os Costas, viajara rumo à Lisieux, deixando para o pretérito o seu amor. Em momento algum, hesitou ou esperou alguma resposta dele; como já disse, era decidida e austera em seus ideais. Ela jamais negou seu incondicional amor, mas omitiu que havia sido fecundada. Com sua partida para Lisieux acabara a união ilícita advertida pelos Costas e a tribo.
Entre Juan e Costa não havia relacionamento. Só comércio, no qual aquele conhecera Judite. Costa, o homem que me criou, nunca o conheceu pessoalmente, se me lembro bem. Os Costas já se encontravam a caminho da França quando ela partira com meu tio e outros, após ajeitar as coisas comerciais pendentes. Acredito que Juan nem soube que foi meu pai. Ele só não podia ficar com ela, porque era uma judia e ele, um cigano. Não poderiam se juntar. Vede bem, Juan não foi um cigano como se fala hoje. Vivia em tendas, coisas muito grandes. Era um conquistador de tudo que se possa imaginar – terras, lugares, mulheres etc. Criava muitos cavalos, dos quais tinha um fascínio incrível, como já havera dito.
Penso que minha mãe não voltou a vê-lo. Talvez tivesse morrido sem saber que nasci, caso tenha sabido da gravidez. Ou então achas que se eu soubesse do paradeiro exato dele não iria atrás ou ele... mandado me buscar?
 ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Com certeza que teria! Mantive os pontos comerciais na Europa e África também por isso.
Vê que, de Lisieux até o dia de minha morte, não se falou mais dele, à exceção das vezes em que indaguei sobre a existência dele, desde após minha mãe ter me revelado a minha real procedência.
Foi apenas um mero acontecimento. Do dia que Judite deitou-se com ele, dos tempos que se encontraram e que saiu da Espanha para a França, não soube nunca de minha mãe ter escrito para ele ou ter comentado sobre o nascimento. Também não poderia, porque o Costa já havia me registrado. Esse me bancou em toda minha vida, não foi Juan de Córdoba. Fui para o Brasil com o dinheiro dos Costas, com o nome dele.
Que aceitação teria eu? Judite é que não poderia me assumir. Ninguém sabia dela como minha mãe. No Brasil, ela se vestia tal como poderia vestir-se, andava normalmente como os daqui. Ela não poderia ter filhos, sequer se apresentar, de maneira alguma, à frente da sociedade como realmente era. Não poderia ser; de que jeito seria? Mãe sem pai? Juan também não poderia assumir um filho; como criaria? Jônatas?
Quando nasci em Lisieux, minha mãe sabia que, estando com os Costas, eu estaria bem. Como viajavam muito, logo me achariam filho legítimo deles, caso contrário, considerar-me-iam filho do mal, do adultério entre o Costa e Judite. Pelo fato de a mulher do Costa ser doente e fraca para ter filhos, foi comodável ficar como filho dela.
Enfim, meses depois de partir, num dia invernal – provavelmente entre dezembro a fevereiro – Judite deu-me à luz em Lisieux. Subtrai nove meses antes para estimardes o período da partida. Surgi para o mundo na França pela coincidência dos Costas e Judite estarem ainda por lá, enquanto Juan estava, possivelmente, em Córdoba, acredito.
Não sei se Juan, após meu nascimento em Lisieux, ficou, saiu ou morreu na Espanha. Ou se seguiu o povo que o acolheu, visto por mim em sonho. Caso seja esta última, provavelmente trocou todos os seus trajes para poder se vestir como os integrantes de sua sociedade. Entendo, então, que tenha feito moradia lá. Ele tinha pátria, mas ficou naquele lugar, porque se amasiou com Judite. Tinha de ficar; ela é quem não ficaria. Tinha de acompanhar os Costas. De Lisieux, onde me pariu e que imediatamente tornei filho dos Costas, fomos embora para Coimbra. Acho que não teve notícias dele, nem dela.
Calma! Deixa molhar minha seca garganta, pois falo demais. Quem sabe eu me recordo de algo que confunda a ti e me desdiga ou corrija...
Pode parecer gracejo meu, por conseguinte não é. Vinus est veritate. Após bebericar, agora me lembro. Juan despediu-se dela em Lisieux. É... ? Disse-lhe que não poderia ficar nem assumir a criança, pois não tinha como; Judite não seria aceita. E eu que pensava que o amor fosse transcendental! Idiota! Infantilidade! Culpa de minhas leituras, de uma época, de minha época. No entanto, a ironia que aprendi com estas mostrou-me a real e não verdadeira sociedade. Agora, se realmente não soube de mim, prefiro a versão de que tenha obtido ciência do meu nascimento.
Mas de algo tem plena certeza, leitor, faze constar que todos nós fazemos parte de uma família de beberrões!