Por
Deus e por São Francisco, parecia-me que tinha minha iniciativa criadora, de
forma estúpida, a benção desses, pois, com o liberalismo, enriquecia mais e
mais. Assim se deu o meu pequeno império.
Depois
de adequar minha casa ao que queria, comecei a realizar saraus e encontros na
minha luxuosa casa. Tinha um negro a recepcionar as pessoas no portão, os
senhores e senhoras que compunham a nata dessa sociedade. Hermengarda, uma
senhora muito vanguardista, ajudava-me em toda organização. Era a minha
acompanhante. Recebia meus convidados pela sala de festa, na qual ocorriam os
saraus. Logo de entrada, ofuscava-lhes a luxuosidade de minha casa: tapetes
orientais, quadros caríssimos, taças de cristal, empregados ocidentalmente bem
apessoados e apresentados, candelabros de cristal e prata, enfim, tudo
impecavelmente bem apresentável... toda uma cultura europeia. Os homens que
quisessem privacidade para dialogar - enquanto suas decrépitas e feias mulheres
ficavam a matraquear escarniciosamente e a observar outros homens que lá se
encontravam; sobre filosofia, política, arte, finanças, mulheres, enfim,
sobrepujar uns aos outros com suas gabolices fúteis e especulativas – ou até para
falarem mal de mim; os acolhia em outra parte mais reservada para que bebessem,
grunhissem, fumassem como num incêndio e pudessem cuspir suas entranhas podres
de si mesmos nas escarradeiras sem que outros convivas observassem tal
horripilante e gosmenta cena. Enquanto isso, no salão receptivo, tinha sempre
uma rapariga a tocar maravilhosamente um órgão, pessoas a bailarem, a cantarem,
a recitarem poesias, tudo encantavelmente bem feito e produzido.
Tudo
ocorria burguesamente muito bem. A sociedade daquela época encontrava-se em
minha casa para comer, beber, se divertir, se esbaldar e, o melhor, para falar
mal de mim aos meus pés. Mas não de estômago e boca vazias. Tudo era farto.
Tudo apolíneo. Hipócritas. Déspotas! Canalhas! De fato, muito se era gasto para
essa ostentação.
Em
contrapartida, o trabalho que também realizava em meu porão me rendia muito.
Lá, ao mesmo sucesso em que ocorria esse esplendor na sala de minha casa,
recebia outros homens para se deliciarem numa grande orgia regada a fumo,
vinho, jogatinas, mulheres e pederastas. Bacante. Frequentavam pessoas de
renome e de importantes cargos sociais. Digo-te, leitor, foi assim que obtive
mais facilidade para advogar e principalmente contrabandear.
Embarquei
nessa nova empreitada comercial, pelo fato de conciliar duas coisas: primeira,
diminuir a procura da orgia longe de casa; segunda, apiedava-me deveras dos
marginalizados. Como já disse, não tinha um pederasta nem uma de baixa meretriz
que eu não recolhesse, que não botasse dentro de casa, mas não para conviver
comigo, e sim lá no porão, onde eram bem tratados. Quando não estavam recebendo
ninguém, saiam à rua para distribuir comida aos pobres, pois eu, João Paulo,
sempre, sempre fui muito, muito ligado à Igreja, sempre ajudei também
financeiramente, e como. Eram meus serviçais. Minha ascensão econômica foi
abençoada por Deus e minha dedicação ao próximo, por São Francisco de Assis.
Mas eu era católico e não protestante, nem judeu.
Em
vida, novamente digo, fui devoto de um santo. Procurava fazer tudo aquilo que a
igreja dizia que ele havia feito em vida. Ainda bem que a desgraça não aconteceu em
frente à igreja dele. O nefasto ocorreu na descida da Igreja de Santo Antônio
da Barra, o casamenteiro. O santo de minha grande devoção foi sempre São Francisco
de Assis.
No
meu porão se sabia de tudo. Respeitado pelo meu poder econômico eu sempre fui,
mas a bebida acabou comigo. Bebia muito, muito mesmo, tentando esquecer a minha
procedência. É, meu caro, poderia até agora não parecer, mas sofri muito e sofro
por isso. Sempre procurei, através da bebida, tentar esquecer ter sido um filho
renegado, bastardo, apesar da presença de dom Mathias, apesar de estudar muito
em Coimbra, de ser Bacharel, de minha mãe ter vindo comigo para o Brasil,
apesar de todo o dinheiro herdado e multiplicado. Embora tudo isso, não tive a
dignidade ou desfavor de conhecer meu verdadeiro pai. Esse optou em continuar
seguindo o seu clã a permanecer conosco, porque assim seria excomungado e
banido dos seus. Parece-me mais desprazer... Enche minha taça!
Retornado
à fuga de minha realidade insatisfatória...
Essa
visão empreendedora, capitalista, calculista e fria, durou alguns meses até uma
noite inesquecível. Um acontecimento marcou minha vida. Uma visita realizou-me
mais ainda, em um dos meus saraus, conheci a mais bela de todas as raparigas e
mais interessante também, logo eu. Por ela edifiquei meu tolo coração.
Numa
encantadora noite de sarau, em minha luxuosa casa, concomitantemente com os
jogos e orgias que ocorriam no porão, recebi além de outras inúmeras pessoas,
uma figura que me chamou a mim muita atenção por sua delicada e distinta
aparência às minhas retinas uma bela nobre. Ininterruptamente, apaixonei-me por
ela, à primeira vista.
Ela,
que havia chegado acompanhada por um senhor e mais duas senhoras, intitulava-se
da Família Mello. O nome dela era Maria Isabel Cristina Correia de Mello... ou
simplesmente Isabel. Disso nunca me esqueço. Como a adorava! Minha Isabel, irmã
de Maria, minha princesa, conhecida como rainha por várias histórias e do meu
reino, minha libertadora. Que mulher maravilhosa. Uma deusa camoniana. Isabel
de bela, de mel, minha Bel no nosso doce refúgio. Por essa mulher tornei-me
mais ébrio, na verdade, descobri o real significado da palavra ébrio. Deixei-me
levar pelos romancistas de minha época. Cri que o amor poderia ser verdadeiro,
o mais sublime dos sentimentos, que estava sendo mais uma vez abençoado por
Deus. Por mais que houvesse intempéries em minha vida, o final seria burguês,
feliz ou de extrema fuga, de acordo com o que queríamos em nossas leituras
contemporâneas.
Segundo
um filósofo clássico, diria que senti algo que meu corpo e mente jamais
poderiam suportar, uma coisa desenfreada que me tiraria da razão, tornando-me
um desvairado, louco, assassino, o Amor. Para ele, o Amor em sua totalidade só
existiria fora de nosso mundo; nenhum ser humano seria capaz de amar
verdadeiramente. Nossa vã carne não o suporta. Seria necessário transcender,
liberta-se da prisão da alma, para que o Amor acontecesse em sua plenitude, era
espiritual. No entanto, prefiro o poeta Camões, pois a esse o espírito só tem
valor após o corpo experimentar, essa é a celebração da vida. O meu amor por
Isabel Cristina sempre foi mais comprometido com o desejo, com o empirismo. Meu
amor, essa viagem sem destino, equivalia valorosamente ao amor espiritual.
Essas duas concepções povoaram minha mente e fizeram de mim o que fui e relato
a ti, caríssimo.
Portanto,
tive um destino um pouquíssimo melhor do que o do infortunado jovem Werther. Meus
sofrimentos não foram os mesmos, fui mais camoniano, embora não tenha sido
muito diferente de Emma Bovary, pactual como Fausto, pessimista como Byron e
realista como Flaubert.