domingo, 26 de julho de 2015

PREFÁCIO

Esta obra nos reporta à labareda e ao fulgor imenso de um eu perdido na história, mas imperioso dentro de nossas raízes. O título desse romance não poderia ser mais apropriado, pois nos leva a refletir sobre o que somos e de onde viemos. O prazer desta leitura me fez voltar no tempo e (re)viver sensações indescritíveis, já que residimos em uma constante intermitência entre o inteligível e o que nos é concreto. Na continuidade, sucumbi aos efeitos semióticos que regozijaram minha alma e me fizeram travar em vaivens de êxtase, de emoções e de sensatez. Talvez precise ser um pouco mais clara. Vamos ao “acaso”.

Com a narrativa, estive com Juan poucas vezes, e estas, por suas vezes, foram num completo emaranhado sucessivo de perdas e buscas, e com elas, uma mistura de desejos, confusões e afirmações. Juan, pai de João - narrador de Confissões descontínuas de uma mente confusa, cigano marroquino que aqui se apresenta de “olhos à irracionalidade do outro”, se mostrou em meus sonhos e, somente lendo este texto, tomei pé de sua face que me transportou para alhures de minha matéria e das minhas convicções. A leitura me levou ao descompasso, o fôlego roubou os olhos e me voltou para uma viagem que passou por Marrocos, Espanha, Portugal; fiz junto com ele digressões, transgressões, até o limiar de tal intimidade que se fundiu numa “intermitente inquietação gostosamente confusa” e estagnou-se até a última letra da derradeira página.

E lá eu estava, embaraçada mais uma vez, imaginando se a descontínua mente seria a minha, a de João Paulo, ou a de Fábio Rodrigo Penna, autor deste livro. Tenho certeza de que o leitor terá percepções com as quais travará um diálogo instigante entre as cores que tangem a história de Juan (João) e as muitas que permeiam as nossas.

Penna deu substância e revestiu o texto com um sentimento que trouxe à luz sua alma de nascente escritor. Sua linguagem envolve uma roupagem com a qual interagimos num triângulo entre leitor, texto e autor. Neste contexto, percebemos o quão podemos assumir identidades diferentes, não unificadas, em momentos indeterminados, os quais envolvem um “norte” coerente e cheio de plurissignificados.

Dentro de nós há identidades contraditórias e este livro é um convite à reflexão sobre o que somos, fomos e o que poderíamos ser. É aqui que percebemos que o nosso mundo é inundado pelas palavras que dão vida ao universo das sensações, momentos estes que são eternos.

Quebrar paradigmas e distâncias é possível quando lemos João, Juan, e por que não Fábio R. Penna? Ainda que não possamos ler as ações simples do autor, há a possibilidade de conhecê-lo na excentricidade do personagem, pois todos nós temos e deixamos marcas, nossos selos d’água, e são eles que nos fazem ser autênticos.

O convite é impreciso, todavia desconhecido leitor, tuas leituras nos aproximarão em abusivas ressignificações bastante próximas: não só a minha, mas a de muitas mentes confusas.
Boa viagem!

Simone Cristina Menezes Martins dos Santos
Professora da Universidade do Estado do Pará

(UEPA)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

XXI - ROMANTISMO, ÉPOCA DE AMOR SUBLIME



Por Deus e por São Francisco, parecia-me que tinha minha iniciativa criadora, de forma estúpida, a benção desses, pois, com o liberalismo, enriquecia mais e mais. Assim se deu o meu pequeno império.
Depois de adequar minha casa ao que queria, comecei a realizar saraus e encontros na minha luxuosa casa. Tinha um negro a recepcionar as pessoas no portão, os senhores e senhoras que compunham a nata dessa sociedade. Hermengarda, uma senhora muito vanguardista, ajudava-me em toda organização. Era a minha acompanhante. Recebia meus convidados pela sala de festa, na qual ocorriam os saraus. Logo de entrada, ofuscava-lhes a luxuosidade de minha casa: tapetes orientais, quadros caríssimos, taças de cristal, empregados ocidentalmente bem apessoados e apresentados, candelabros de cristal e prata, enfim, tudo impecavelmente bem apresentável... toda uma cultura europeia. Os homens que quisessem privacidade para dialogar - enquanto suas decrépitas e feias mulheres ficavam a matraquear escarniciosamente e a observar outros homens que lá se encontravam; sobre filosofia, política, arte, finanças, mulheres, enfim, sobrepujar uns aos outros com suas gabolices fúteis e especulativas – ou até para falarem mal de mim; os acolhia em outra parte mais reservada para que bebessem, grunhissem, fumassem como num incêndio e pudessem cuspir suas entranhas podres de si mesmos nas escarradeiras sem que outros convivas observassem tal horripilante e gosmenta cena. Enquanto isso, no salão receptivo, tinha sempre uma rapariga a tocar maravilhosamente um órgão, pessoas a bailarem, a cantarem, a recitarem poesias, tudo encantavelmente bem feito e produzido.
Tudo ocorria burguesamente muito bem. A sociedade daquela época encontrava-se em minha casa para comer, beber, se divertir, se esbaldar e, o melhor, para falar mal de mim aos meus pés. Mas não de estômago e boca vazias. Tudo era farto. Tudo apolíneo. Hipócritas. Déspotas! Canalhas! De fato, muito se era gasto para essa ostentação.
Em contrapartida, o trabalho que também realizava em meu porão me rendia muito. Lá, ao mesmo sucesso em que ocorria esse esplendor na sala de minha casa, recebia outros homens para se deliciarem numa grande orgia regada a fumo, vinho, jogatinas, mulheres e pederastas. Bacante. Frequentavam pessoas de renome e de importantes cargos sociais. Digo-te, leitor, foi assim que obtive mais facilidade para advogar e principalmente contrabandear.
Embarquei nessa nova empreitada comercial, pelo fato de conciliar duas coisas: primeira, diminuir a procura da orgia longe de casa; segunda, apiedava-me deveras dos marginalizados. Como já disse, não tinha um pederasta nem uma de baixa meretriz que eu não recolhesse, que não botasse dentro de casa, mas não para conviver comigo, e sim lá no porão, onde eram bem tratados. Quando não estavam recebendo ninguém, saiam à rua para distribuir comida aos pobres, pois eu, João Paulo, sempre, sempre fui muito, muito ligado à Igreja, sempre ajudei também financeiramente, e como. Eram meus serviçais. Minha ascensão econômica foi abençoada por Deus e minha dedicação ao próximo, por São Francisco de Assis. Mas eu era católico e não protestante, nem judeu.
Em vida, novamente digo, fui devoto de um santo. Procurava fazer tudo aquilo que a igreja dizia que ele havia feito em vida. Ainda bem que a desgraça não aconteceu em frente à igreja dele. O nefasto ocorreu na descida da Igreja de Santo Antônio da Barra, o casamenteiro. O santo de minha grande devoção foi sempre São Francisco de Assis.
No meu porão se sabia de tudo. Respeitado pelo meu poder econômico eu sempre fui, mas a bebida acabou comigo. Bebia muito, muito mesmo, tentando esquecer a minha procedência. É, meu caro, poderia até agora não parecer, mas sofri muito e sofro por isso. Sempre procurei, através da bebida, tentar esquecer ter sido um filho renegado, bastardo, apesar da presença de dom Mathias, apesar de estudar muito em Coimbra, de ser Bacharel, de minha mãe ter vindo comigo para o Brasil, apesar de todo o dinheiro herdado e multiplicado. Embora tudo isso, não tive a dignidade ou desfavor de conhecer meu verdadeiro pai. Esse optou em continuar seguindo o seu clã a permanecer conosco, porque assim seria excomungado e banido dos seus. Parece-me mais desprazer... Enche minha taça!
Retornado à fuga de minha realidade insatisfatória...
Essa visão empreendedora, capitalista, calculista e fria, durou alguns meses até uma noite inesquecível. Um acontecimento marcou minha vida. Uma visita realizou-me mais ainda, em um dos meus saraus, conheci a mais bela de todas as raparigas e mais interessante também, logo eu. Por ela edifiquei meu tolo coração.
Numa encantadora noite de sarau, em minha luxuosa casa, concomitantemente com os jogos e orgias que ocorriam no porão, recebi além de outras inúmeras pessoas, uma figura que me chamou a mim muita atenção por sua delicada e distinta aparência às minhas retinas uma bela nobre. Ininterruptamente, apaixonei-me por ela, à primeira vista.
Ela, que havia chegado acompanhada por um senhor e mais duas senhoras, intitulava-se da Família Mello. O nome dela era Maria Isabel Cristina Correia de Mello... ou simplesmente Isabel. Disso nunca me esqueço. Como a adorava! Minha Isabel, irmã de Maria, minha princesa, conhecida como rainha por várias histórias e do meu reino, minha libertadora. Que mulher maravilhosa. Uma deusa camoniana. Isabel de bela, de mel, minha Bel no nosso doce refúgio. Por essa mulher tornei-me mais ébrio, na verdade, descobri o real significado da palavra ébrio. Deixei-me levar pelos romancistas de minha época. Cri que o amor poderia ser verdadeiro, o mais sublime dos sentimentos, que estava sendo mais uma vez abençoado por Deus. Por mais que houvesse intempéries em minha vida, o final seria burguês, feliz ou de extrema fuga, de acordo com o que queríamos em nossas leituras contemporâneas.
Segundo um filósofo clássico, diria que senti algo que meu corpo e mente jamais poderiam suportar, uma coisa desenfreada que me tiraria da razão, tornando-me um desvairado, louco, assassino, o Amor. Para ele, o Amor em sua totalidade só existiria fora de nosso mundo; nenhum ser humano seria capaz de amar verdadeiramente. Nossa vã carne não o suporta. Seria necessário transcender, liberta-se da prisão da alma, para que o Amor acontecesse em sua plenitude, era espiritual. No entanto, prefiro o poeta Camões, pois a esse o espírito só tem valor após o corpo experimentar, essa é a celebração da vida. O meu amor por Isabel Cristina sempre foi mais comprometido com o desejo, com o empirismo. Meu amor, essa viagem sem destino, equivalia valorosamente ao amor espiritual. Essas duas concepções povoaram minha mente e fizeram de mim o que fui e relato a ti, caríssimo.
Portanto, tive um destino um pouquíssimo melhor do que o do infortunado jovem Werther. Meus sofrimentos não foram os mesmos, fui mais camoniano, embora não tenha sido muito diferente de Emma Bovary, pactual como Fausto, pessimista como Byron e realista como Flaubert.

XX - A OUTRA FACE DE MINHA VIDA



Minha vida tomou outro rumo, mudou completamente, logo, meus negócios também. Ventos deveriam levar-me para algum outro destino. Não contrabandeava e advogava como dantes. Hermengarda foi quem assumiu tudo sozinha. Deus a tenha num bom lugar. Infelizmente seria mais uma a me abandonar... e pior, por causa de mim mesmo.
Senti-me muito solitário. Hermengarda, aquela doce ladra, mesmo com a idade em suas costas, mantinha-se junto a mim e dos negócios. Não aguentava mais minha mesquinha vida burguesa e de frequentar os mais diversos bordéis atrás, totalmente bêbado, das mais diversas meretrizes possíveis. Estava cansado disso tudo quando uma luz me alcançou. Absorto em alguns pensamentos, após as afetivas perdas humanas, e a me entregar mais ainda à bebida, tive uma formidável ideia. Contratei alguns homens para que no porão de minha casa construíssem um discretíssimo recinto para jogatinas e encontros. Pensei eu: por que não ter o meu próprio salão de saraus e meu “inferninho” para em vez de frequentar o de outros, isso renderia muito mais ao meu bolso.
E assim, pois Deus e São Francisco escutaram as minhas preces, tudo aconteceu e durou algum tempo.
Eu vivi na antiga rua da lama, que hoje, na Bahia, é a rua, se não me encontro equivocado, chamada de Camucan, em Nazaré das Farinhas, lugar de muita miséria. Muitas mulheres de lá com suas crianças cadavéricas, mas com barrigas gigantescas, misturavam areia fina à farinha para render e alimentá-las. No final dessa rua tinha a Igreja de Bom Jesus. Minha casa era de altos e baixos, com um porão onde recebia toda a corte. Embaixo era uma casa de jogos, na qual se encontrava tudo que se pode imaginar. Em cima, na minha casa realizava saraus e mais saraus, enquanto aquelas mulheres podres, porcas e imundas da corte, que nem gostavam de tomar banho, tinham constantemente seus maridos, que muito pouco as procuravam, em meus porões para estar com outras mulheres, com outros homens ou com pederastas. Como essa corte era fedida e imunda! Já viste alguma figura em que um nobre estivesse sorrindo? Obviamente que não; acredito que sejas sincero, pois a nobreza não tinha dente. Entrementes, em relação a essa minha empreitada, não pense que era enorme, pois a minha cidade era pobre. Recebia muita gente de fora.
Muitos dos pederastas que se casavam só procuravam suas mulheres no dia do casamento, porque eram obrigados. Assim que elas dissessem que estavam grávidas, eles não as procuravam mais, porque a Santa Madre Igreja dizia que uma mulher grávida não poderia, em hipótese alguma, manter nenhum ato sexual com seu respectivo marido. Logo, ela poderia saciar-se com quem não fosse seu marido, livrando-o da obrigação de ser homem para uma mulher. Quando ela, muitas das vezes, levantava-se da cama, do resguardo – se a criança concebida fosse homem, ficaria quarenta dias deitada; se fosse mulher, permaneceria trinta dias -; já se encontrava grávida, pois mais uma vez tinha sido possuída de uma maneira grossa, estúpida, violenta, imoral, indecente, sem ter o mínimo direito de suspirar. Muitos daqueles porcos só sabiam desabotoar suas braguilhas que eram um pedaço de pano que tombava para frente. Eles as penetravam praticamente tendo orgasmo. Após, largavam-nas. Percebe, caríssimo... aquelas mulheres se encontravam ali deitadas como um balde de excremento esperando ser usado, e nem banho esses porcos tomavam, mas era para os porões que eles iam. Os que realmente eram homens procuravam as negras ou até as brancas que eram da “minha propriedade”, os outros, os pederastas, procuravam os homens para se realizarem dominando-os ou sendo dominados sexualmente.
Andei muito pelo mundo. Estudei muito também sobre culturas. Descobri sobre casos de homossexualismo como prática normal de uma sociedade. Ou como doença mental. Li que, por exemplo, na Grécia antiga isso era totalmente comum. Quando os homens iam para guerra, não levavam suas mulheres. Logo, como esses homens se serviriam sexualmente durante tanto tempo longe? Aquiles, Pátroclo, Alexandre, o grande. Esses grandes e viris guerreiros serviam de si mesmos ou de rapazes que tinham seus escrotos retirados para servirem sexualmente nas longas viagens. Agora, esse conceito não deve ser concebido à luz do pensamento atual ou cristão. Não são os homossexuais que conheci em vida. Nesse terra vi muita covardia, embora não pudesse fazer nada para ceifá-la. O negro escravo, por volta de seus quatorze anos ou quando atingia a maior idade, tinha sua bunda exposta numa mesa para que tirassem-na a virgindade. Os jovens filhos dos donos da fazenda enrabavam-nos que eram presos para isso. Negras também eram oferecidas para outros com esse fim. Se possuísse feições bonitas, se fosse esguia, era estuprada como direito. Algumas eram até mutiladas ou assassinadas por causarem inveja a mulheres brancas. O europeu adorava isso, a violência e a  promiscuidade. Não participei dessa podridão. Os negros que deitavam com os brancos em meus porões eram homossexuais, sentiam atração física e estética por outro ser do mesmo sexo. Mas se deitavam para sobreviver, ter principalmente o que comer. No meu tempo e no meu espaço, homem que tem prazer sexual com outro homem não é homem; é sodomia, é patologia. E quantos grandes homens foram mulheres!
Todas as mulheres de baixa meretriz e pederastas que pediram minha ajuda, eu, João Paulo da Costa, os acolhi. E foi uma mulher nobre que acreditou que me faria de bobo. Idiota é aquele que pensa tudo ser muito fácil.

XIX - RETORNO AO PASSADO DO INÍCIO




De volta à narrativa de um ano após a partida de minha mãe para junto de seus antepassados. Enfim, preciso continuar.
Em consequência do recente falecimento de minha mãe, meus negócios começaram a estremecer sem desmoronar, no entanto, o tempo do vento em popa haveria de mudar, pois mais momentos nefastos e tenebrosos estavam a espreitar-me. Em menos de dois anos, abandonaram-me Avelar e... Jônatas. Primeiro este, depois, aquele. Avelar foi um amigo presente da nova terra. Não tenho nada mais a declarar sobre ele. Sepulto-o aqui como o seu fraco coração o fez com ele. Jônatas, este sim, sempre foi uma incógnita.
Vivi quase toda minha vida em Coimbra e, em uma das vezes que retornava de lá, fui informado de que minha mãe não existira mais. Percebi então que tudo não era fácil para eu sozinho poder fazer o que fiz. Fiquei em Coimbra até os meus vinte e seis anos e mais os tempos das viagens. Judite, minha mãe – tive uma de verdade, aliás, duas –; não a posso esquecer, por isso repito seu nome, ficava no Brasil. Era a provedora dos meus bens; poderia comprar tudo o que quisesse. E por esse poder de compra é que fomos respeitados, não me faltava força financeira.
Ao lado de Jônatas, habitei os dias mais tristes da minha vida. Foi ele que me ajudou a enterrá-la no Sudão, na terra dos dela. Eu sempre o vi como um estranho e nesse momento foi-me o mais próximo. Esse homem, a quem eu tinha como um padrasto, tomou, simbolicamente, conta de mim, mas morreu pouco tempo depois dela. Possivelmente, não haveria mais o porquê de viver.
Nossa relação era engraçada. Custava para entender o que dizia. Não sei muito bem, até hoje, em que língua falava e escrevia, era em pé, pareciam desenhos. Por causa disto, fazia-se de mudo à sociedade, somente falava conosco de casa num português muito engraçado. Agora, quando falava com minha mãe, não havia ninguém que entendesse. Infelizmente, não aprendeu a falar em português direito, nem eu aprendi outra língua. Somente a bela sudanesa é que era inteligentíssima! Recordo-me com respeito àquele homem de olhos grandes, puxados e esbugalhados. Enterrei-o aqui mesmo, mesmo porque não sabia de que lugar era originário. Do homem que acompanhou Judite por um amor incondicional, de quem não sabia direito o nome, lembro-me apenas de um castiçal de prata, o qual tinha uma estrela que trazia consigo que, presumo, fosse a de Davi.
Leitor, antes de nasceres, de saíres da barriga de tua mãe, de saíres do escroto de teu pai, quem sabe Deus, já tenhas estado em minha casa. Tua mãe disse-te isso: se teus pais estiveram em minha casa e não entraram por estar em obras e pintada de verde? Para chegar até minha casa, atravessava-se um rio pouco caudaloso, mas com muitas pedras, por uma ponte de madeira que ligava Nazaré das Farinhas ao outro lado. Ficava no final da estrada, do lado esquerdo, na rua da Igreja de Bom Jesus, rua da Lama. Casa de frente para a rua. Saibas de mim, custoso... lá eu fui bem-sucedido por muito tempo, enquanto a figura feminina de minha mãe foi a minha pilastra de sustento e equilíbrio.
Foi nesse momento de saudosismo e desespero, que negros de minha propriedade me aconselharam, sempre mui humildes, respeitosos e compadecidos com a tristeza desse amigo, que realizasse um preceito aprendido com os antepassados deles. Não tinha nada a perder, mesmo porque não acreditava em sua religiosidade. Respeitava e admirava, mas não cria de coração. Eles persuadiram-me de que poderia entrar em contato, de certa forma, com o espírito de minha mãe. Isso, a princípio, estremeceu-me o espírito... mas me confortaria. Perguntaram-me sobre qual teria sido o alimento preferido por ela, que eu o preparasse e o oferecesse-lhe numa mata fechada... entretanto houve um negro que sugerira a entrega da oferenda no antigo aposento dela em minha casa. Logo, logo dissuadi-lo, pois isso poderia me causar mais temor em vez de paz. Eles me auxiliariam em tudo. Assim procedemos. Durante a noite alta, quando já estávamos no local indicado, próximos a um riacho... lembro-me bem, pois, além dois pássaros noturnos, ouvia nitidamente o barulho da água corrente; eles começaram a entoar cânticos sagrados em sua língua franca. Os pêlos do meu corpo estavam em pé. Que temor circulava o meu espírito! Olhava para tudo quanto era quanto, achando que alguma assombração estivesse a se aproximar. Parecia definitivamente que me encontrava num portal entre o mundo dos mortos e dos vivos. Agindo, desde o início da ritualística, como se a coisa mais natural do mundo estivesse acontecendo... procuraram me tranquilizar, alegando que meus olhos eram profundamente ocidentais. Em seguida, pediram-me que lhe entregasse o alimento simbolicamente e que conversasse como se ela estivesse ali. Então o procurei fazer. Após pedir desculpas pela má procedência que tive a ela quando em vida, meu deus, um rio de lágrimas tomou conta de mim... não parava de chorar. Realmente senti a presença serena dela. Falei tudo que deveria ter dito enquanto viva, o quanto a amava. Estava aliviado. Senti certa possessão de leveza. Embora cresse que manifestação fosse divina e que possessão estivesse atrelado ao maléfico, esses africanos me persuadiram de que nada passava conotativamente de uma questão sanguínea. Animismo.
Depois, eles levaram-me embora. Eu estava regozijado, enfim, havia me entendido definitivamente com Judite, minha saudosa mãe. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

XVIII - OS PEDROS E OS NOBRES



Em 1883, no dia doze de junho, meu corpo, esse jaz no chão, cinco anos antes da lei áurea. Eu não tive a felicidade de presenciar a libertação dos negros. Não tive esse prazer; faltaram-me cabeça e poucos anos para isso. Mas na minha ocasião movimentos abolicionistas já existiam e quem era simpatizante praticava às ocultas. Tudo às escondidas, porque, desde que D. Pedro I, esse imoral e indecente, que no dia sete de setembro de mil novecentos e vinte e dois estava bêbado (para mim não é mais problema asseverar isto, somente não sei se acreditarás), assumiu o poder, vivemos uma grandiosa mentira. Esse homem nunca separou nada de ninguém. Era um alcoólatra, um covarde. A história do Brasil não é contada verdadeiramente. É difícil aceitares isso? Ele nada fez. Quem planejou tudo foi a mulher dele. Essa história de que se levantou e gritou ficou sendo a conveniente, pois era isso que a sociedade (compreendas que essa palavra aqui contraria o seu sentido totalizante) desejava que acontecesse. Pouco tempo depois, não resistiu a toda pressão que o povo punha nele, desde antes. Quando o chamaram para retornar a Portugal, comprometeu-se, diante do povo, que permaneceria no país, mas só sabia participar de badernas e de doações de grandes lotes de terra, para mulheres, mulheres e mais mulheres com quem tinha filhos, com quem se deitava, com quem trocava doenças. Provavelmente, morreu cheio de sífilis!
Por fim, foi obrigado a partir, a ir embora e deixar aqui o seu filho. Haveria de deixar um regente tomando conta. Esse homem sim, D. Pedro II mereceu tudo o que lhe foi direito; justo, honesto, amante das artes e das letras e meu amigo. Procurou elevar tudo isso a uma cultura muito grande. Mesmo assim, quando se pensava em libertar os escravos, já havia facções que ansiavam derrubá-lo. Eram aqueles conservadores que faziam parte do militarismo, que comandavam as forças armadas que havia naquela época. Embora Caxias tenha sido assistido para a manutenção da integridade do império, ele era um racista e destruidor de quilombos. E também não podemos esquecer dos republicanos.
No tempo do Império, no tempo de Pedro II, muitas vezes fui ao do Rio de Janeiro. Por inúmeras ocasiões fui à terra de Pedro, Petrópolis – capital do Império -, visitá-lo no seu Palácio de Verão. Nessa época atual tua, não acredito que se encontre algo com o nome de João Paulo da Costa, pois na minha época de vida, quando se morria em desgraça, o nome de qualquer um era varrido de tudo e, como não tive herdeiros, meus bens todos foram tomados, tudo, pois, se alguma mulher pariu algum filho meu, eu não tomei conhecimento.
Em vida, certamente, não poderia escrever tais asseverações, pois baseada em que história é essa contada? Minha vida. Como se fala da ficção de um homem que mentiu, não separou nada de ninguém? Essa ficção tem endereço exato.
Presta atenção numa coisa muito séria: muitas pessoas naquela época escreveram e seus livros foram queimados, suas casas destruídas, suas famílias e corpos foram salgados. Não sei como são os atos de repreensão hoje. Contudo, não possuo mais corpo para ser torturado! Apenas conto parte de uma história, da época em que vivi. Acredito que, se desejas alumiar meus caminhos, não precisarias saber de tantos acontecimentos, não precisaria falar de uma independência de mentira, no entanto, que maravilhoso! Quem sabe assim, depois desse relato, eu vá direto para o céu!
Talvez algum dia alguém que estude a história, que tenha acesso a todo um acervo de documentos, que não tenham sido danificados ou alterados ainda, como já disse anteriormente, consiga fazer esse povo ver que, se houve realmente um afastamento da corte real de Portugal que aqui estava, foi graças à mulher de Pedro I e não a ele. Era um beberrão, um fanfarrão, imoral, indecente. Sua corte era podre e imunda! Eu não conheci o pai de D. Pedro I, mas se sabe que, segundo a falácia na corte, era um porco.
Essas coisas, que hoje se ouve falar dos salões, nobres com dentes bonitos, por exemplo, são mentiras. Onde viste isto? A maioria tinha seus dentes podres, limpavam a boca no gibão, tomavam banho de ceroulas, quando tomavam. Em contrapartida, os pederastas e as mulheres de baixa meretriz, os marginalizados, eram muito mais limpos. Eles não se deitavam com os nobres, sem que esses não tomassem banho. Eles eram lavados. As glandes, o pênis tinha de ser limpo porque fedia a podre. Isso tudo é a história que desejas saber? Tens certeza?
O rumo da história é como um rumo de rio: se mudar, seca. O passado não pode ser destruído. O presente vive no passado almejando o futuro. Águas passadas não movem o mesmo moinho. É só represá-las que moverão outro. Tiradentes, o mártir com cara de Jesus? Esse grande maçom não morreu enforcado. Morreu foi um pobre mendigo, pois a Maçonaria não deixaria. A história de Maria Quitéria acabou quando pegou seu marido com as nádegas voltadas para outro homem. Francisco de Assis, que dançou nu antes de se tornar um homem santo, morreu de sífilis. As pústulas não eram as marcas de Cristo, pois a doença já estava escondida nele. E assim vai.

XVII - BAHIA DE TODOS OS SANTOS



Santos? Santos sim. Desde criança, embora meus pais judeus, tornei um católico fervoroso. Assim é o povo português. Não haveria lugar melhor para ir. Segundo Avelar, lá eu poderia melhorar o contrabando, pois com meu dinheiro poderia facilitá-lo pelo porto. Portanto, fui sozinho a Salvador. Lá adquiri uma quinta maravilhosa em Nazaré das Farinhas, na antiga rua da lama, chamava-se assim naquela época em que ali morei. Comprei uma outra casa que ficava em Salvador mesmo. Era numa ladeira chamada Nazaré também. Eu tinha o que não sei como é chamado hoje, um local no qual recebia e atendia às pessoas. Afinal de contas, era um bacharel. Ali trabalhava sério, todavia quero deixar claro que sempre fui uma pessoa muito séria. Meu trabalho sempre foi sério, pois, então, achas que contrabando não é uma coisa seria? Se não fizer direito, não dará certo. Tem de ser uma coisa séria. Apesar de ter me formado, fiz mais contrabando quando cheguei ao Brasil do que exercer minha própria área de estudo.
Um mês depois de instalado, trouxe minha mãe, Jônatas, Avelar e sua esposa, que não se desfizeram das propriedades nas Gerais. Dona Hermengarda ficou responsável pelo empório. Vendi a propriedade de Minas, onde permaneci por um ano.
Estabelecendo-me na Bahia, fui e voltei várias vezes porque precisava acertar todo o meu contrabando que vinha de Portugal, da França, da Espanha e de tudo quanto era lugar. O que contrabandeava? Tapetes, roupas, fazendas, tecidos, os mais finos possíveis; bebidas, armas, artigos antigos e muito o que se possa imaginar. Tudo isso chegava por trás do cais, por volta da Barra. Descarregava e passava por trás da Igreja de Santo Antônio da Barra. Lá ficavam as coisas guardadas. Agora, algo que nunca fiz foi tráfico de negros. De resto, contrabandeei tudo o que fosse necessário. E não foi muito... assim... certinho. Não penses que tudo foi só contrabando. Também não foi tanto assim. Desviava algumas coisas. Apresentava aquilo que estava em cima, porém o que estava nos porões ninguém sabia de nada. No Brasil, eu não teria a chance de ser alguém. Cheguei com nome, maior de idade, mas desconhecido. Para continuar sendo alguém, tive de roubar e traficar. Assim sobrevivi: traficando, defendendo o culpado e encarcerando o inocente. A esse último caso, não há nada mais fácil; o inocente, pobre, é culpado à vida inteira, pois só em nascer nessa condição já é um crime. Quando o filho de um homem rico assassinava alguém por qualquer que fosse a razão, eu arrumava uma pessoa pobre para que assumisse a responsabilidade do ato e fosse presa. Tempo depois, dava um jeito para que ela fosse libertada ou que fugisse e mandava–a para um lugar distante com outro nome.
Não sei para quem ficaram os meus bens. Foi assim que fiquei rico, ou seja, mais rico. Num período de cinco anos residindo na Bahia, já era um homem respeitado pelo comerciante que era, pelo bacharel requisitado, enfim, pelo poder financeiro que já ostentava perante a sociedade.
Tudo o que fiz, tudo o que deixei de declarar, não sei como posso revelar isso hoje, mas todo o meu contrabando era guardado dentro da igreja de Santo Antônio da Barra. Embaixo, nos porões, ali guardava tudo. Ninguém nunca procuraria nesse lugar. Nunca! Eu tinha acesso por ali, pela passagem feita por negros eu passava. Não havia lugar melhor, mesmo porque já falei que sempre fui católico fervoríssimo. Minhas contribuições à Igreja sempre foram generosíssimas. E aqui sentado a ti falo, onde? Como? Não vês? Nada disso importa! Põe vinho em minha taça e me sirve. Meu charuto apagou; ofereçe-me outro.
Lembra-te de quantos dias depois retornei como espírito? Lembra-te do que usaram para me trazer de volta? Minha capa de veludo, isso mesmo. Naquela época sim, sabia-se montar um espírito de morto... ou como diziam os iorubanos, egum. Hoje não, acabou. Infelizmente, nesse momento, não me lembro do nome de quem me montou, não sei. Mas era alguém conhecido por mim, pois eu tinha os negros muito bem tratados. Eu nunca velei a ninguém que fui a favor da libertação dos negros. Jamais seria contra! Não te esqueça que minha mãe era uma negra da cor do cacau.
Desde sempre, caro filho e leitor, quando se fala em negro, todo mundo imagina uma porção de cabelo duro, canelas finas, escravo, fome, um arco, flechas, pulando de árvore em árvore igual a macacos, mas por quê? Todos são condicionados pelo Ocidente. Sê hipócrita, não serás o primeiro nem o último, dize: “eu não sei!” Essa é a concepção quando se fala de negro. Engraçado é o antagonismo. Quando se fala de branco, imaginam-se altos palácios, castelos, pureza, conhecimento e sabedoria.
A pele de minha mãe era como cacau, uma mulher lindíssima, agora, como ela conseguiu, com a pele dessa cor, ter cabelos escorridos e azulados olhos semiesbugalhados, não me perguntes? Os meus olhos eram verdes como os amendoados de meu pai, segundo Judite.
Enfim...
A tudo agradecia aos santos pela minha assunção. Tanto que todo domingo ia, juntamente com minha mãe e Jônatas e os Avelar, à Igreja rezar. Eles não eram convertidos ao catolicismo. Iam à Igreja por mim e pela sociedade. Não podiam dizer que eram judeus, nem que eram a favor. O que faziam religiosamente era escondido. Só tinham um Deus. Agora, não sei se marroquinos, semitas, caldeus, sicranos, de onde vieram, tinham um só Deus. Só sei que fomos parar na Bahia, onde tudo em quanto lugar tinha Deus lá dentro. Lá aprendi amorosamente a conhecer o deus Ogum, a deusa Iemanjá, a deusa Oxum, o deus Xangô. Para os negros de lá, toda a natureza é Deus, pois ela o representa. Imagina a confusão que nossas cabeças viraram. Ô terra de todos os santos! Assim foi construída a concepção de minha saudosa Bahia por esse meu povo tão sofrido.