De
volta à narrativa de um ano após a partida de minha mãe para junto de seus
antepassados. Enfim, preciso continuar.
Em
consequência do recente falecimento de minha mãe, meus negócios começaram a
estremecer sem desmoronar, no entanto, o tempo do vento em popa haveria de
mudar, pois mais momentos nefastos e tenebrosos estavam a espreitar-me. Em
menos de dois anos, abandonaram-me Avelar e... Jônatas. Primeiro este, depois,
aquele. Avelar foi um amigo presente da nova terra. Não tenho nada mais a
declarar sobre ele. Sepulto-o aqui como o seu fraco coração o fez com ele.
Jônatas, este sim, sempre foi uma incógnita.
Vivi
quase toda minha vida em Coimbra e, em uma das vezes que retornava de lá, fui
informado de que minha mãe não existira mais. Percebi então que tudo não era
fácil para eu sozinho poder fazer o que fiz. Fiquei em Coimbra até os meus
vinte e seis anos e mais os tempos das viagens. Judite, minha mãe – tive uma de
verdade, aliás, duas –; não a posso esquecer, por isso repito seu nome, ficava
no Brasil. Era a provedora dos meus bens; poderia comprar tudo o que quisesse.
E por esse poder de compra é que fomos respeitados, não me faltava força
financeira.
Ao
lado de Jônatas, habitei os dias mais tristes da minha vida. Foi ele que me
ajudou a enterrá-la no Sudão, na terra dos dela. Eu sempre o vi como um
estranho e nesse momento foi-me o mais próximo. Esse homem, a quem eu tinha
como um padrasto, tomou, simbolicamente, conta de mim, mas morreu pouco tempo
depois dela. Possivelmente, não haveria mais o porquê de viver.
Nossa
relação era engraçada. Custava para entender o que dizia. Não sei muito bem,
até hoje, em que língua falava e escrevia, era em pé, pareciam desenhos. Por
causa disto, fazia-se de mudo à sociedade, somente falava conosco de casa num
português muito engraçado. Agora, quando falava com minha mãe, não havia
ninguém que entendesse. Infelizmente, não aprendeu a falar em português
direito, nem eu aprendi outra língua. Somente a bela sudanesa é que era
inteligentíssima! Recordo-me com respeito àquele homem de olhos grandes,
puxados e esbugalhados. Enterrei-o aqui mesmo, mesmo porque não sabia de que
lugar era originário. Do homem que acompanhou Judite por um amor incondicional,
de quem não sabia direito o nome, lembro-me apenas de um castiçal de prata, o
qual tinha uma estrela que trazia consigo que, presumo, fosse a de Davi.
Leitor,
antes de nasceres, de saíres da barriga de tua mãe, de saíres do escroto de teu
pai, quem sabe Deus, já tenhas estado em minha casa. Tua mãe disse-te isso: se
teus pais estiveram em minha casa e não entraram por estar em obras e pintada
de verde? Para chegar até minha casa, atravessava-se um rio pouco caudaloso,
mas com muitas pedras, por uma ponte de madeira que ligava Nazaré das Farinhas
ao outro lado. Ficava no final da estrada, do lado esquerdo, na rua da Igreja
de Bom Jesus, rua da Lama. Casa de frente para a rua. Saibas de mim, custoso...
lá eu fui bem-sucedido por muito tempo, enquanto a figura feminina de minha mãe
foi a minha pilastra de sustento e equilíbrio.
Foi
nesse momento de saudosismo e desespero, que negros de minha propriedade me
aconselharam, sempre mui humildes, respeitosos e compadecidos com a tristeza
desse amigo, que realizasse um preceito aprendido com os antepassados deles.
Não tinha nada a perder, mesmo porque não acreditava em sua religiosidade.
Respeitava e admirava, mas não cria de coração. Eles persuadiram-me de que
poderia entrar em contato, de certa forma, com o espírito de minha mãe. Isso, a
princípio, estremeceu-me o espírito... mas me confortaria. Perguntaram-me sobre
qual teria sido o alimento preferido por ela, que eu o preparasse e o
oferecesse-lhe numa mata fechada... entretanto houve um negro que sugerira a
entrega da oferenda no antigo aposento dela em minha casa. Logo, logo
dissuadi-lo, pois isso poderia me causar mais temor em vez de paz. Eles me
auxiliariam em tudo. Assim
procedemos. Durante a noite alta, quando já estávamos no local indicado,
próximos a um riacho... lembro-me bem, pois, além dois pássaros noturnos, ouvia
nitidamente o barulho da água corrente; eles começaram a entoar cânticos
sagrados em sua língua franca. Os pêlos do meu corpo estavam em pé. Que temor circulava o
meu espírito! Olhava para tudo quanto era quanto, achando que alguma
assombração estivesse a se aproximar. Parecia definitivamente que me encontrava
num portal entre o mundo dos mortos e dos vivos. Agindo, desde o início da
ritualística, como se a coisa mais natural do mundo estivesse acontecendo...
procuraram me tranquilizar, alegando que meus olhos eram profundamente
ocidentais. Em seguida, pediram-me que lhe entregasse o alimento simbolicamente
e que conversasse como se ela estivesse ali. Então o procurei fazer. Após pedir
desculpas pela má procedência que tive a ela quando em vida, meu deus, um rio
de lágrimas tomou conta de mim... não parava de chorar. Realmente senti a
presença serena dela. Falei tudo que deveria ter dito enquanto viva, o quanto a
amava. Estava aliviado. Senti certa possessão de leveza. Embora cresse que
manifestação fosse divina e que possessão estivesse atrelado ao maléfico, esses
africanos me persuadiram de que nada passava conotativamente de uma questão
sanguínea. Animismo.
Depois,
eles levaram-me embora. Eu estava regozijado, enfim, havia me entendido definitivamente
com Judite, minha saudosa mãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário