quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

XIX - RETORNO AO PASSADO DO INÍCIO




De volta à narrativa de um ano após a partida de minha mãe para junto de seus antepassados. Enfim, preciso continuar.
Em consequência do recente falecimento de minha mãe, meus negócios começaram a estremecer sem desmoronar, no entanto, o tempo do vento em popa haveria de mudar, pois mais momentos nefastos e tenebrosos estavam a espreitar-me. Em menos de dois anos, abandonaram-me Avelar e... Jônatas. Primeiro este, depois, aquele. Avelar foi um amigo presente da nova terra. Não tenho nada mais a declarar sobre ele. Sepulto-o aqui como o seu fraco coração o fez com ele. Jônatas, este sim, sempre foi uma incógnita.
Vivi quase toda minha vida em Coimbra e, em uma das vezes que retornava de lá, fui informado de que minha mãe não existira mais. Percebi então que tudo não era fácil para eu sozinho poder fazer o que fiz. Fiquei em Coimbra até os meus vinte e seis anos e mais os tempos das viagens. Judite, minha mãe – tive uma de verdade, aliás, duas –; não a posso esquecer, por isso repito seu nome, ficava no Brasil. Era a provedora dos meus bens; poderia comprar tudo o que quisesse. E por esse poder de compra é que fomos respeitados, não me faltava força financeira.
Ao lado de Jônatas, habitei os dias mais tristes da minha vida. Foi ele que me ajudou a enterrá-la no Sudão, na terra dos dela. Eu sempre o vi como um estranho e nesse momento foi-me o mais próximo. Esse homem, a quem eu tinha como um padrasto, tomou, simbolicamente, conta de mim, mas morreu pouco tempo depois dela. Possivelmente, não haveria mais o porquê de viver.
Nossa relação era engraçada. Custava para entender o que dizia. Não sei muito bem, até hoje, em que língua falava e escrevia, era em pé, pareciam desenhos. Por causa disto, fazia-se de mudo à sociedade, somente falava conosco de casa num português muito engraçado. Agora, quando falava com minha mãe, não havia ninguém que entendesse. Infelizmente, não aprendeu a falar em português direito, nem eu aprendi outra língua. Somente a bela sudanesa é que era inteligentíssima! Recordo-me com respeito àquele homem de olhos grandes, puxados e esbugalhados. Enterrei-o aqui mesmo, mesmo porque não sabia de que lugar era originário. Do homem que acompanhou Judite por um amor incondicional, de quem não sabia direito o nome, lembro-me apenas de um castiçal de prata, o qual tinha uma estrela que trazia consigo que, presumo, fosse a de Davi.
Leitor, antes de nasceres, de saíres da barriga de tua mãe, de saíres do escroto de teu pai, quem sabe Deus, já tenhas estado em minha casa. Tua mãe disse-te isso: se teus pais estiveram em minha casa e não entraram por estar em obras e pintada de verde? Para chegar até minha casa, atravessava-se um rio pouco caudaloso, mas com muitas pedras, por uma ponte de madeira que ligava Nazaré das Farinhas ao outro lado. Ficava no final da estrada, do lado esquerdo, na rua da Igreja de Bom Jesus, rua da Lama. Casa de frente para a rua. Saibas de mim, custoso... lá eu fui bem-sucedido por muito tempo, enquanto a figura feminina de minha mãe foi a minha pilastra de sustento e equilíbrio.
Foi nesse momento de saudosismo e desespero, que negros de minha propriedade me aconselharam, sempre mui humildes, respeitosos e compadecidos com a tristeza desse amigo, que realizasse um preceito aprendido com os antepassados deles. Não tinha nada a perder, mesmo porque não acreditava em sua religiosidade. Respeitava e admirava, mas não cria de coração. Eles persuadiram-me de que poderia entrar em contato, de certa forma, com o espírito de minha mãe. Isso, a princípio, estremeceu-me o espírito... mas me confortaria. Perguntaram-me sobre qual teria sido o alimento preferido por ela, que eu o preparasse e o oferecesse-lhe numa mata fechada... entretanto houve um negro que sugerira a entrega da oferenda no antigo aposento dela em minha casa. Logo, logo dissuadi-lo, pois isso poderia me causar mais temor em vez de paz. Eles me auxiliariam em tudo. Assim procedemos. Durante a noite alta, quando já estávamos no local indicado, próximos a um riacho... lembro-me bem, pois, além dois pássaros noturnos, ouvia nitidamente o barulho da água corrente; eles começaram a entoar cânticos sagrados em sua língua franca. Os pêlos do meu corpo estavam em pé. Que temor circulava o meu espírito! Olhava para tudo quanto era quanto, achando que alguma assombração estivesse a se aproximar. Parecia definitivamente que me encontrava num portal entre o mundo dos mortos e dos vivos. Agindo, desde o início da ritualística, como se a coisa mais natural do mundo estivesse acontecendo... procuraram me tranquilizar, alegando que meus olhos eram profundamente ocidentais. Em seguida, pediram-me que lhe entregasse o alimento simbolicamente e que conversasse como se ela estivesse ali. Então o procurei fazer. Após pedir desculpas pela má procedência que tive a ela quando em vida, meu deus, um rio de lágrimas tomou conta de mim... não parava de chorar. Realmente senti a presença serena dela. Falei tudo que deveria ter dito enquanto viva, o quanto a amava. Estava aliviado. Senti certa possessão de leveza. Embora cresse que manifestação fosse divina e que possessão estivesse atrelado ao maléfico, esses africanos me persuadiram de que nada passava conotativamente de uma questão sanguínea. Animismo.
Depois, eles levaram-me embora. Eu estava regozijado, enfim, havia me entendido definitivamente com Judite, minha saudosa mãe. 

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